quarta-feira, 25 de março de 2009

O Orçamento Participativo e a propaganda enganosa

Orçamento Participativo e a propaganda enganosa

O espectro político mundial hoje difere muito da conhecida dicotomia esquerda-direita que imperava em meados do século XX. Denota-se uma série de nuances, seja de um lado (comunistas, socialistas, social-democratas, esquerda-ecológica, liberais europeus, etc.), seja de outro (conservadores, neo-fascistas, libertários, entre outros), a tal ponto que hoje não é possível fazer uma distinção objetiva, e é raramente possível quando falamos em opiniões pontuais (uma mesma idéia pode ser defendida pelos mais diversos grupos). Por isso, diz-se da falência do modelo dicotômico que tanto perdurou e tanto mal fez ao século XX. Pode-se falar em uma espécie de rosa dos ventos como espectro político, ou qualquer que seja o símbolo usado, importa deixar claro que não existe mais uma divisão bipolar.

Há muito tempo inúmeros economistas, cientistas políticos e estudiosos das ciências sociais em geral têm defendido que a solução para o desenvolvimento de uma sociedade mais próspera é a de enfraquecer o gigante “Estado” trazendo para o âmbito da sociedade civil a liberdade de escolher os seus destinos. Deixando de lado a distinção conceitual esquerda-direita, que certamente não representa nada do ponto de vista prático, a solução passaria por uma diminuição não só do tamanho, mas também da importância das decisões estatais na vida do cidadão/ator-econômico. Tomando como premissa que a democracia é a única forma garantística das liberdades individuais, convém analisar, dentro do espectro democrático, um exemplo de descentralização das decisões que, ao longo dos anos, vem sendo usado como bandeira por parte do espectro político mundial: a democracia participativa e o exemplo do Orçamento Participativo.

É inútil discursar sobre as diversas facetas da democracia, entretanto sabe-se que a democracia participativa é um viés útil e íntegro como modo de representação de interesses da população, assim como o são a democracia representativa e quaisquer outras formas de discussão/deliberação democráticas. Mas seria esse viés o mais eficaz para a deliberação do gasto público? E, ainda, para não entrar no discurso da eficácia, seria este viés da democracia o mais adequado para os problemas atuais da sociedade? Para ilustrar o que pretendo dizer tomarei como exemplo o caso do Orçamento Participativo, grande conhecido dos gaúchos, mas hoje mundialmente famoso graças à propaganda exercida por alguns veículos de comunicação, dentre eles o jornal francês “Le monde diplomatique”.

A experiência portoalegrense de democracia participativa, posta em prática pelos petistas no fim da década de 80 é típico exemplo de propaganda enganosa. Digo isso pela experiência pessoal e acadêmica pela qual passo no momento, estudando na cidade de Bologna, Itália (conhecida como “La rossa”, entre outros motivos, justamente pela tradição comunista da cidade – governada pelo Partido Comunista italiano por cerca de 40 anos e que hoje sofre um processo de remodelação iniciado por uma coalizão de oposição aos comunistas, que tomou o poder em 1999 e que acabou com a hegemonia “vermelha” na cidade). Aqui, o orçamento participativo é visto como o paraíso da democracia. A experiência de democracia participativa é tida como uma possível solução a uma cidade dividida por bairros com demandas diversas. No entanto, o que choca é a repercussão positiva, porém parcial, das conseqüências do programa implementado na capital gaúcha.

A informação que chega aos ouvidos da estudante de ciência política que, ao perguntar-me como funciona o modelo, queria obter mais informações para o seu trabalho de conclusão de curso (que tinha como tema justamente este exemplo de democracia participativa) deixa-a estarrecida: menos de 5% do orçamento municipal é destinado às demandas do programa*. Fica ainda mais surpresa ao descobrir, pela via de um reles estudante, que o modelo, diversamente do que havia lido, tem como diretamente envolvidos cerca de 1 a 2% da população do município (se contarmos os credenciamentos nas assembléias e reuniões das diferentes zonas da cidade).

Não há como negar que a idéia da população discutir diretamente os rumos do dinheiro público é interessante. Não há como negar, ainda, que do ponto de vista utópico, uma sociedade engajada nas decisões tiraria da própria política o peso das decisões, desinchando um estado cada vez mais mastodôntico (idéia que, na teoria, vai certamente ao encontro do que defendo). E se entende, portanto, o interesse da jovem idealista no assunto, uma vez que ao sair da aula de “teoria do desenvolvimento político” está cheia de idéias de como desenvolver a sua cidade de modo a torná-la mais próspera. O problema, certamente, não está na idéia, na ingenuidade da estudante, e, sim, na maneira como a propaganda “vermelha” consegue desvirtuar um programa que, passando ao largo nos 16 anos de administração petista e 4 de administração Fogaça - realizou algumas obras pontuais em determinadas regiões da cidade, criando muito mais demandas aprovadas que soluções práticas para os problemas urbanos –, conseguiu se tornar famoso ao redor do mundo.

Tal sucesso de crítica se deve à falsa propaganda de que o programa é majoritariamente difundido na sociedade, criando uma figura fantasiosa de uma cidade onde os problemas são resolvidos e geridos pela população, onde o orçamento é dividido, não entre clientelagens e burocratas, mas entre bairros e regiões que, sozinhos, decidem onde investi-lo. E uma sociedade utópica, em que todos se reúnem duas vezes por mês para deliberar a divisão da torta e que, depois, com a sua porção do quinhão, fazem o que bem entendem (ou melhor, o que a maioria decide) teria agora o nome de Porto Alegre, cidade sem problemas, uma vez que governada por seus próprios filhos... Bem vinda à realidade, estudante, não existe almoço grátis.

Não que o programa não seja proveitoso, mas certamente não a ponto de atingir sucesso total de público e crítica. A parcela ínfima do orçamento possibilita algumas obras (que talvez não fossem realizadas não fossem às deliberações feitas nas reuniões do programa), e concordo que a vida do Joãozinho da Lomba do Pinheiro que agora pode brincar na creche recentemente construída pelo município em parceria com a população mudará radicalmente. Mas do ponto de vista macro, do ponto de vista de gerência do orçamento público, pouco muda. E mais, muitas vezes o dinheiro se dirige a demandas que não são realmente aquelas necessárias para a cidade, uma vez que, devido ao desinteresse da população, as votações são esvaziadas, mantendo apenas poucos vizinhos que, em massa, votam pelo asfaltamento da sua rua, ao invés da compra de dois aparelhos de hemodiálise para o posto de saúde (uma vez que nenhum deles tem problema de rins e, por enquanto, é mais importante asfaltar a rua).

Deixando de lado a carga de exemplos e partindo para o ponto de vista teórico da situação, como entender porque um programa, que, como qualquer outro, de qualquer outra prefeitura ao redor do mundo, tenta consertar problemas da cidade, às vezes acertando e às vezes errando, possa ser conhecido mundialmente? Agora sim, não posso deixar de dizer... só pode ser obra de um belo marqueteiro! Ou de uma rede de comunicação eficiente e falaciosa, que propaga meias-verdades como se fossem realidade e que omite com o escopo de informar, somente a fim de divulgar uma idéia, uma ideologia.

Voltando ao discurso do início, o exemplo dado de uma experiência cotidiana, e porque não dizer às vezes até bem sucedida de um programa de descentralização das decisões fáceis e baratas para o orçamento é claro: o Orçamento Participativo serve apenas para privilegiar a escolha do sujeito-cidadão como mais eficiente que a escolha do estado (que sabe-se, não sabe tudo, com o perdão do jogo de palavras) – mas que pode vir a errar quando entra no jogo a deliberação e a posterior vitória da maioria. A democracia participativa não é nada mais que a aplicação prática da teoria da informação de Hayek – o sujeito tem muito mais propensão a acertar na escolha quando a faz sozinho, e o estado (na figura dos representantes) tende a não haver toda a informação necessária para fazer a escolha certa de onde investir. O problema reside propriamente em aplicar tal teoria à prática no caso em voga: seria possível que cada um escolhesse onde investir a sua parcela do orçamento, ou acaba-se por haver uma escolha “pública” – mas não-estatal -, cínica e ligada ao interesse pessoal da maioria que aprova? Acaba-se trocando a figura do “desinformado” parlamento pela figura da egoísta minoria organizada que aprova as deliberações.

Ao invés, utilizando a rede do orçamento participativo e a vontade de “participar”, a estratégia de criação de soluções, e não simplesmente de demandas, se enquadra muito mais naquilo que é a verdade faceta da democracia participativa (a participação, não só na escolha e na criação de demandas, mas também na execução do problema criado). O que quero dizer com isso, é que muito mais do que haver um orçamento participativo, se deve haver uma execução participativa. Um Estado que opta pela descentralização das soluções, opta pela escolha mais “informada”, pela escolha daquele que tem o problema propriamente vizinho. Porém, não é simplesmente descentralizando para uma outra esfera (nesse caso a esfera regional, zonal, de bairro, ou de vizinhança) que os problemas serão sanados. O mesmo problema já demonstrado da escolha pública afetará as decisões do Orçamento Participativo, mas na sua face mais problemática, a do cinismo e egoísmo da minoria organizada. Não existe almoço grátis, o Estado só tem dinheiro porque cobra taxas, e quanto mais demandas, mais taxas, e por aí vai.

A execução das demandas por parte daqueles mesmos que a criaram é justamente o que afasta a carga egoística da decisão. Colocando o cidadão que delibera e aprova como figura chave na execução do plano, suas decisões serão pensadas a ponto de não criar encargos para um terceiro, e, sim, criar um encargo possível de ser executado por si mesmo. De modo a ser mais didático: digamos que exista uma demanda pela construção de uma creche em uma vila da periferia de um determinado município. De um lado a população da vila que, formada majoritariamente por carroceiros, desempregados e trabalhadores informais, quer que seus filhos não tenham o mesmo futuro. De outro o município que, com pouco dinheiro em caixa, não tem dinheiro nem mão-de-obra para a sua construção.

Nesse momento, entram em jogo terceiros interessados, associações de bairro, e organizações voluntárias. Invertamos os papéis agora: digamos que os habitantes da vila, por estar desempregados, possam utilizar seu tempo livre de modo a tornar possível a reivindicação: Prefeitura que dispõe de um terreno, população que dispõe de trabalhadores e mão-de-obra disponibilizada por meio de doações e/ou, por que não, pela própria prefeitura que, certamente, dispõe de alguns sacos de cimento, tijolos e telhas. De modo simplificado, o exemplo mostra que é possível ao menos uma diminuição do custo para a Prefeitura (e conseqüentemente para a própria população). E muitos são os outros exemplos possíveis de utilização de mão-de-obra, organização dos diferentes atores em prol da execução da demanda criada. A solução não é nova: o papel inovador seria justamente o de utilizar a rede de orçamento participativo como canal de encontro de todos os atores, possibilitando uma deliberação menos egoística e reivindicativa e, portanto, plausível de ser executada. Uma escolha, certamente, mais adequada.

Deixando de lado a premissa posta, da superioridade do indivíduo em comparação ao estado no investimento (na escolha de onde colocar o dinheiro), e passando ao largo sobre o conceito de democracia participativa, a conclusão prática do exemplo dado é simples: o exercício de uma pseudo-democracia participativa, que no caso não passa de um processo de criação de demandas sem a criação de soluções, não pode e não deve perdurar como modelo a ser seguido por cidades ao redor do mundo. O mito do Orçamento Participativo, nos moldes como o implementado na capital gaúcha, não merece a atenção que recebe, definitivamente.

Abandonando a mitificação exercida pela mídia comunista, e analisando objetivamente as conseqüências práticas do exercício do programa, não se pode deixar de criticar o programa que na verdade não passa de um pequeno modo de descentralizar algumas – poucas – decisões. A democracia participativa, por si só, não faz mal ao Estado, e muito menos a uma sociedade livre, e pode, muito bem, ser um ótimo canal de descentralização das decisões, agregando diversos atores na definição de metas para o saneamento dos problemas e na execução de suas soluções. A idéia de um Estado desinchado e descentralizado e de uma sociedade civil ativa e participativa não é nova, porém a quebra de alguns paradigmas é necessária para o verdadeiro desenvolvimento.

Para concluir, não podem os comunistas, socialistas e social-democratas utilizarem a bandeira de uma faceta da democracia (aquela participativa) como sua, uma vez que a democracia não é monopólio de uma ideologia, e quaisquer que sejam as idéias, só podem ser postas em prática de maneira democrática (sendo essa a premissa principal de qualquer Estado). Ainda pior quando se trata de um exemplo mal acabado de democracia participativa, tomado por grupos de pressão e, freqüentemente, exercício da famosa “ditadura da minoria organizada”. Democracia participativa não é sinônimo de Orçamento Participativo. A participação da população na escolha do investimento público é assaz interessante do ponto de vista democrático, e pode muito bem servir como modo de tornar mais eficiente o gasto público, desde que levada a cabo dentro de parâmetros corretos (diferentes da pura e simples reivindicação frente ao Estado que tudo faz).

Rafael Abreu
Acadêmico da Faculdade de Direito da UFRGS.

*os dados foram adquiridos via conversa informal com ex-funcionário da prefeitura e elevados para não incorrer em erro, uma vez que o orçamento do município de Porto Alegre não distingue o investimento derivado de deliberações do OP, tornando praticamente impossível a descoberta do efetivo montante utilizado e executado por via do programa.

Um comentário:

Rafael Abreu disse...

Conforme bem retifcado pela nossa colega Kelli, seria impossível a colocação de aparelhos de hemodiálise em postos de saúde, minando assim o exemplo dado por mim no texto. reitero que a opção foi pela didática, no entanto, falhas assim não são aceitáveis, razão pela qual me retifico e deixo à imaginação do leitor um novo exemplo.
Abraços